No palco, sozinho, Amaury Lorenzo não apenas interpreta um personagem, mas encarna toda a complexidade e a força de um povo. Em “A Luta”, monólogo dirigido por Rose Abdallah e baseado no texto de Ivan Jaf, Lorenzo se transforma em um rapsodo, trazendo à vida a história da Guerra de Canudos de “Os Sertões”. Em entrevista exclusiva ao Jornal de Brasília, o ator compartilhou detalhes sobre o processo de criação, suas conexões pessoais com a narrativa e as profundas mensagens que a peça carrega.
Quando questionado sobre a preparação para interpretar um rapsodo no monólogo, Lorenzo descreveu um processo intenso e desafiador. “Nós tivemos cerca de dois meses de pesquisa e ensaios, mas os ensaios mesmos aconteceram durante, incrivelmente, uma semana”, contou. A falta de teatros disponíveis no Rio de Janeiro pós-pandemia complicou ainda mais a situação. “Nós não podíamos pagar um teatro particular porque não temos patrocínio, aliás, não temos patrocínio até hoje. Então, foi um processo de muita luta, como é o nome do espetáculo, até que a gente estreasse.”
Na peça “A Luta”, inspirada nos antigos rapsodos que entoavam as epopeias de Homero, a diretora e o dramaturgo exploram a Guerra de Canudos sob a ótica visionária de Euclides da Cunha. Num cenário onde um único ator domina o palco com sua voz e movimentos, enfrentamos as investidas do exército brasileiro contra o arraial e a resistência fervorosa de seus habitantes.
A ligação de Lorenzo com a história de Canudos é profunda e pessoal. “Minha mãe é nordestina, é lagoana. Eu tenho familiares no sertão, no sertão nordestino, então isso me conecta, me puxa muito,” revelou. A memória de seus avós sertanejos ressoa em sua interpretação, reforçando a brasilidade e a identidade cultural que a peça busca transmitir. “Canudos trata de brasilidade, de construção da nossa identidade. A gente está num período ali de fim de monarquia, início da República, e a gente percebe vários elementos no livro do Euclides da Cunha que relatam sobre esse novo Brasil.”

Sobre a influência da diretora Rose Abdallah, Lorenzo é categórico. “Definitivamente em todos os sentidos. A Rose é a idealizadora do projeto. Eu sou apenas um ator que subo no palco para dar conta de toda a construção de direção da Rose Abidá.” Quanto ao texto de Ivan Jaf, a iração é evidente. “Ivan Jaf é um mestre da escrita e da literatura brasileira. Quando fui convidado pela Rose para fazer esse monólogo e soube que era uma adaptação do Ivan Jaf, eu fiquei muito emocionado, muito honrado.”
A complexidade do texto de Euclides da Cunha apresenta desafios únicos para o ator. “Dar conta desse gráfico de personagens é um grande desafio para eu enquanto ator,” explicou. Ele mencionou a necessidade de transmitir a diversidade e as contradições presentes na obra, além de incorporar movimento, canto e voz falada na encenação. “Em uma hora eu não paro. Então esse desafio é muito grande, dar conta de uma guerra. Um ator só dá conta de uma guerra.”
O monólogo como forma de resistência
Fazer um monólogo foi uma experiência nova e enriquecedora para Lorenzo. “Fazer um monólogo é a minha primeira experiência e é fantástica,” disse. Ele destacou a importância do encontro direto entre artista e público, especialmente em um cenário de carência de investimento público no setor artístico. “A opção da gente fazer um monólogo é uma opção típica brasileira, onde a gente dá um jeitinho para tudo, mas eu também acho muito triste que a gente tenha que sempre ficar buscando alternativas.”
Em sua obra magistral “Os Sertões”, Euclides da Cunha abandona a linguagem acadêmica para traduzir jornalisticamente uma guerra de ideias. Aqui, as forças republicanas, portadoras da modernidade, confrontam o obscurantismo religioso que sustentava a monarquia. Litoral contra interior, elites contra o povo, fé versus razão – todas essas dicotomias se entrelaçam num drama onde a intolerância e a violência emergem como protagonistas, revelando que ambos os lados refletem, no fim das contas, os mesmos males.

Ao final de cada apresentação, Lorenzo busca conectar o público à história de Canudos e à identidade brasileira. “Quando a gente olha para trás e entende de onde a gente vem, a gente melhora quem a gente é agora, e a gente consegue pensar num futuro maior,” afirmou. Ele vê o teatro como um ato político poderoso, capaz de formar consciências e sensibilizar para questões históricas e sociais. “O público vem, mesmo que eu saiba que a maior parte do público vem porque me vê na televisão, mas acaba que tem uma aula de história, uma aula de literatura.”
Dualidades e conflitos humanos
O ator ainda abordou as dualidades e conflitos presentes na história de Canudos e como esses temas são fundamentais para a humanidade. “Essas contradições todas fazem parte da nossa humanidade, nós somos produtos de tudo isso.” Ele vê o teatro como um espaço essencial para discutir e viver essas questões, celebrando a complexidade humana.
Amaury Lorenzo, em “A Luta”, não apenas apresenta um monólogo, mas faz do palco um espaço de resistência, memória e reflexão. A peça é um convite para conhecer e entender a história brasileira, e através dela, construir um futuro mais consciente e justo.
Serviço
“A Luta” cumpre uma curtíssima temporada em Brasília nos dias 13 e 14 de julho, com apresentações no Teatro Unip (913 Sul). As sessões acontecem no sábado, às 20h, e no domingo, às 17h e às 19h30. Ingressos à venda pelo site da Sympla.