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Literatura

Sou mulher e negra, mas meus poemas vêm de lugar mais fundo, diz Tracy Smith

A autora foi eleita a poeta laureada dos Estados Unidos para que atuasse como uma espécie de embaixadora da poesia nacional durante dois anos

Redação Jornal de Brasília

15/05/2025 8h51

tracy k smith

Foto: Reprodução/ Instagram


SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Começava a primeira presidência de Donald Trump, em 2017, quando Tracy K. Smith foi eleita a poeta laureada dos Estados Unidos -um cargo oficial, selecionado pela Biblioteca do Congresso, para que a escritora atuasse como uma espécie de embaixadora da poesia nacional durante dois anos.

Nessa época, Smith viajou o país fazendo eventos por pequenas comunidades rurais, lugares que não costumavam receber festivais literários e onde, ela diz, muita gente trazia seus filhos para ver pela primeira vez uma pessoa negra falar em público.

“Foi bem num momento em que sentíamos uma mudança radical no nosso vocabulário, quando as pessoas pareciam autorizadas a desrespeitar umas às outras”, lembra. “De repente nos vendiam uma ideia de que éramos um país dividido e não podíamos conversar ou entender uns aos outros.”

Mas ela sentia isso como uma distorção. Nessas cidadezinhas, que votavam maciçamente em candidatos conservadores, ela costumava ler em grupo um poema sobre uma criança imigrante confusa por não entender o idioma do novo endereço, então ouvia as reações emocionais do público.

“E esta é a parte mais vulnerável de nós, perceber que as nossas lembranças mais profundas também ressoam em gente que achamos que não têm nada a ver conosco”, afirma a escritora de 53 anos na entrevista por vídeo, um sorriso amplo sob dreadlocks com alguns fios brancos. “De repente, estávamos num espaço não de discussão, mas de amor.”

A vocação de Smith como embaixadora da poesia agora vai alcançar São Paulo, onde ela inaugura nesta sexta-feira o Festival Poesia no Centro, iniciativa da livraria Megafauna que reúne dezenas de poetas em uma programação que toma vários endereços, mas se concentra no Teatro Cultura Artística.

A americana diz que “às vezes a poesia é menos central” nos festivais literários. “A ficção é mais lucrativa, e os temas da não ficção jornalística são mais automáticos [nessas programações], então é importante estar num espaço em que a poesia é o coração, porque desde tempos imemoriais é ela que galvaniza a nossa sobrevivência. Lembramos que não somos um nicho.”

A autora chega com o gabarito de quem já venceu o prêmio Pulitzer, uma das principais distinções da poesia em seu país, pelo livro “Vida em Marte”, que chega aqui pela Relicário com tradução de Stephanie Borges -se você suspeitou que o livro tira inspiração de David Bowie, acertou em cheio.

Descrito como um “deus secular” pela autora, ele é a espinha dorsal de uma coletânea que também mobiliza referências como “2001 – Uma Odisseia no Espaço” para unir a metafísica sideral às banalidades palpáveis do cotidiano, em busca de uma filosofia que dê algum sentido ao dia a dia. Veja só um trecho do poema chamado “Ficção científica”:

“Não haverá bordas, mas curvas./ Linhas límpidas apontando apenas adiante./ A história, com a lombada
rígida e páginas dobradas/ nas pontas, será substituída pela nuance,/ Assim como os dinossauros deram lugar/ A montanhas e tumbas de gelo./ Mulheres ainda serão mulheres, mas/ As distinções serão vazias. O sexo,/ Sobrevivendo a toda ameaça, vai satisfazer/ Apenas a mente, que é onde existirá./ Pelo barato, dançaremos só para nós/ Diante de espelhos emoldurados com lâmpadas douradas./ A mais velha entre nós reconhecerá aquele brilho –/ Mas a palavra sol terá ganhado outro sentido/ De Sintetizador de Oxigênio Limpo, um aparelho/ Popular nos lares e asilos.”

“Ao mesmo tempo em que cria imagens muito bonitas, Tracy desenvolve uma série de reflexões sobre a transcendência”, diz a tradutora Stephanie Borges, também poeta. “Consegue fazer um poema sobre uma festa que termina com uma reflexão sobre o fato de não sabermos se estamos sozinhos no universo.”

“Isso reflete muito do que me fez amar a poesia como leitora”, afirma Smith. “A maneira como Emily Dickinson consegue ir do detalhe mais tátil, cotidiano, para algo que nos joga na escala da eternidade. Sempre que uma mudança assim acontece num poema, indo de algo inconcebivelmente grande para algo que está nas suas mãos, me parece uma estratégia maravilhosa não só para a arte, mas para viver em um mundo que pode ser desconcertante e esmagador.”

Junto com o livro premiado, sai também a seleta de poemas “Uma Fome Tão Afiada” pela editora Malê, organizada e traduzida por Salgado Maranhão e Alexis Levitin. Os dois livros, que lançam a autora no país, vêm em edição bilíngue.

“Trata-se de uma poesia de humanidades”, no resumo de Levitin. “Embora a poeta seja afro-americana, não faz poesia simplesmente militante, o que não impede que trate de questões identitárias numa alta linguagem de imaginação poética.”

“Ela tem uma perspectiva de autoria negra muito sofisticada, e os poemas são tão bons que não precisam ficar falando disso o tempo todo”, diz Borges. “Há questionamentos que não são necessariamente ligados ao factual, à lógica de que uma poeta negra deveria dar testemunho.”

A própria Smith concorda. “Nos poemas, eu falo de um lugar que fica abaixo de muitos marcadores de identidade que costumamos abordar. Eu sei que sou mulher, que sou negra, que sou americana, mas minhas perguntas são para as partes de mim que são mais profundas que tudo isso.”

“Só que o fato de eu ser todas essas coisas significa que há certas histórias de que sou mais consciente e pelas quais sou curiosa. Então muitos dos eventos em meus poemas tocam nas experiências de pessoas negras –a raça vira a consciência do meu ambiente.”

Smith então se lembra de um de seus poemas mais conhecidos, chamado “Os Estados Unidos Dão-lhe as Boas-Vindas”, que começa da seguinte forma.

“Por que e pelo poder de quem você foi enviado?/ O que você viu que queria roubar?/ Por que toda essa dança? Por que seus corpos escuros/ Bebem a luz até acabar? O que é que você está exigindo/ De nossos sentimentos? Já roubou algo? Se não,/ O que está pulando no seu peito">

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