Nos últimos 35 dias, trabalhei como produtora executiva do G20 Social, que aconteceu no Rio de Janeiro, de 14 a 16 de novembro. Foi uma experiência histórica: pela primeira vez, a sociedade civil participou desse encontro de líderes globais. A entrega foi monumental, mas o custo também. Como autônoma, trabalhei uma média de 12 a 16 horas por dia, sem pausas, sem fins de semana. Quando adoeci, continuei na frente do computador. Num dia importante, durante uma reunião crucial para apresentar o orçamento ao Estado, perdi a voz. Irônico, não? Perder a voz enquanto o corpo grita por descanso.
E o meu privilégio? Nenhum. Todo mundo estava no mesmo barco, ou pior. A exaustão era um estado coletivo. Enquanto trabalhávamos incansavelmente para garantir que algo grandioso acontecesse, o país inteiro discutia o fim da escala 6×1. Uma mudança importante, sim, mas que me fazia pensar: onde se encaixam os autônomos e empreendedores nessa conversa?
Quando imaginamos um empreendedor, vem à mente a figura do executivo engravatado, desfilando pela Faria Lima em seu terno Armani. Mas no setor cultural e social, o empreendedor está a quilômetros disso. Ele está nos bastidores, de moletom e olheiras, equilibrando sua paixão por transformar o mundo com as demandas de um sistema que nunca para.
Olhei para o lado e vi minha diretora-geral, uma mulher preta de terreiro, mãe solo de um menino de 2 anos, lutando contra a fadiga em reuniões que poderiam ser um e-mail. Um dos sócios, um jovem baixinho do Ceará, recém-descoberto futuro pai, tentava argumentar que precisávamos de mais fundos para a equipe. Ao seu lado, sua sócia acreana, sem ver a noiva há dias, lidava com a exaustão das entregas fora da cidade, enquanto cuidava do pai no leito de morte. Todos, em seus limites físicos e emocionais, movidos por algo maior que eles mesmos: a ideia de que estavam contribuindo para algo que, talvez, pudesse fazer diferença.
Essa dedicação é, ao mesmo tempo, inspiradora e destrutiva. Viramos noites, ficamos longe das nossas famílias e sacrificamos nossas saúdes. Eu, que mal vi meu bebê, sentia a culpa e a solidão pesarem a cada ligação de vídeo apressada. Ainda assim, a equipe se apoiava. O diretor financeiro, recém-separado, levava o filho de 6 anos para o escritório, e nós transformávamos as cadeiras de rodinha em corrida de Kart para distraí-lo. Entre risos momentâneos e reuniões intermináveis, construímos um castelo de cartas emocional, onde cada um sustentava o outro, mesmo que ninguém tivesse forças para sustentar a si mesmo. Mas por que fazemos isso?
A escala 6×1 e o ciclo da exaustão: O fim da escala 6×1 foi pensado para garantir ao menos dois dias de descanso semanal para trabalhadores com carteira assinada. Parece justo, mas, no mundo autônomo, trabalhamos no regime 7×0. Somos movidos pelo medo de perder oportunidades, de não conseguir pagar as contas, de não entregar o melhor. No setor cultural, ainda há um agravante: a paixão pelo que fazemos. Trabalhamos porque acreditamos na transformação que a arte, a música e o ativismo trazem para o mundo. Mas, como adultos, nos perdemos em uma ilusão construída desde cedo.
Voltamos sempre à “pulsão” que rege nossas ações, um desejo inconsciente que nos impulsiona a repetir padrões. No caso do setor cultural, pode-se dizer que muitos de nós internalizamos a ideia de que o trabalho tem que ser um sacrifício, quase como uma penitência, pois crescemos absorvendo a ideia de que luta social é LUTA — e isso dói. Somos adultos tentando corresponder a uma expectativa internalizada na infância: sermos “bons o suficiente”, “bons guerreiros de uma luta”. Mas o “bom o suficiente” no nosso setor é fazer o impossível com os recursos que temos e o cenário que nos é apresentado.
O peso da fila do pão: No final, são pessoas que não importam na fila do pão, exaustas, fazendo de tudo para que um monte de pessoas que também nunca importaram para o mundo pudessem fazer parte de uma cúpula em um local que talvez importassem, para entregar um documento para as 20 pessoas mais importantes do mundo.
Essa é a ironia da nossa luta. Somos movidos pelo desejo de transformar e, ao mesmo tempo, nos destruímos no processo. Talvez seja hora de repensar nossos valores e lembrar que, para mudar o mundo, precisamos estar presentes e inteiros. Afinal, de que adianta perder a voz enquanto tentamos gritar?
Eli Moura, festivaleira e ativista de Direitos Sociais e Saúde Mental
*Ao som de “Both Sides Now”, de Joni Mitchell